terça-feira, 5 de abril de 2016

Filisteus e filisteísmo (Nabokov)

O texto abaixo, apresentado em excertos, é uma tradução de Dom Ciffero para um opúsculo de Vladimir Nabokov, intitulado Philistines and Philistinism. Fica meu tributo ao autor de Lolita.



O filisteu é a pessoa adulta cujos interesses são de natureza material e comum, e cuja mentalidade é formada por idéias ordinárias e por ideais convencionais de seu grupo e tempo. Disse "pessoa adulta" porque a criança ou o adolescente que lembre um filisteu nada mais é do que um papagaio imitando as formas consagradas das pessoas vulgares [...]. "Vulgar" é termo mais ou menos sinônimo de "filisteu": o que é relevante em uma pessoa vulgar não é tanto o convencionalismo de um filisteu, mas a vulgaridade de algumas de suas noções convencionais. Posso também utilizar os termos “cavalheiresco” e “burguês”. Ser cavalheiresco implica uma vulgaridade refinada, que é pior do que a simples grosseria. Arrotar diante de outra pessoa é atitude rude, mas dizer "desculpe-me" depois de arrotar é atitude cavalheiresca e, portanto, pior do que a de uma pessoa vulgar. O termo burguês é usado segundo Flaubert, e não Marx. Burguês, no sentido de Flaubert, é um estado de espírito, não relacionado ao bolso. O burguês é um filisteu presunçoso, uma pessoa vulgar com presunção de dignidade.


Não é provável que o filisteu exista em uma sociedade muito primitiva, embora não haja dúvida de que rudimentos de filisteísmo possam ser encontrados lá. Podemos imaginar, por exemplo, um canibal que prefira que a cabeça humana que ele esteja por comer seja pintada artisticamente, assim como o filisteu norte-americano prefere que suas laranjas sejam pintadas de laranja, o salmão de rosa e o uísque de amarelo. Mas, em termos gerais, o filisteísmo pressupõe um certo estado avançado da civilização, onde, ao longo do tempo, certas tradições tenham se amontoado e já começado a feder.


O filisteísmo é internacional. Pode ser encontrado em todas as nações e em todas as classes. Um duque Inglês pode ter tanto de um filisteu quanto um maçom norte-americano, um burocrata francês ou um cidadão soviético. A mentalidade de um Lênin ou de um Stálin ou de um Hitler, no que diz respeito às artes e as ciências, era totalmente burguesa. Um trabalhador ou um mineiro de carvão pode ser tão burguês quanto um banqueiro ou uma dona de casa ou uma estrela de Hollywood.


O filisteísmo implica não apenas um acúmulo de idéias ordinárias, mas também o uso de frases feitas, clichês e banalidades expressas em palavras batidas. O verdadeiro filisteu não dispõe de nada além dessas idéias triviais, das quais ele é inteiramente formado. Mas deve-se admitir que todos nós temos nosso lado clichê; todos nós, na vida cotidiana, muitas vezes usamos palavras não como palavras, mas como sinais, como moedas, como fórmulas. Isso não quer dizer que sejamos todos filisteus, mas que devemos ter cuidado para não nos permitirmos adentrar muito no processo automático de troca de platitudes. Em um dia quente quase todos, nos Estados Unidos, perguntam: “Esse calor está bom para você ou ainda quer mais ?”, mas isso não indica necessariamente que o falante seja um filisteu. Pode ser simplesmente um papagaio ou um estrangeiro que tenha aprendido a usar a expressão em causa. Quando alguém lhe pergunta: "Olá, como vai?" talvez seja um clichê miserável responder "bem"; mas se você fizer um relatório pormenorizado de sua condição poderá passar por pedante e chato. Acontece também de as platitudes serem utilizadas como uma espécie de disfarce ou como o atalho mais curto para evitar conversa com pessoas tolas. Eu mesmo  conheci grandes estudiosos e poetas e cientistas que, na lanchonete, caiam no nível mais comum da conversa toma-lá-e-dá-cá.


O tipo que eu tenho em mente quando falo em alguém "vulgar e presunçoso" é, assim, digamos, não o filisteu de meio turno, mas o burguês cavalheiresco de turno integral, o produto universal completo da trivialidade e da mediocridade. É o conformista, o homem que está de acordo com o seu grupo e que se caracteriza também por algo mais: é pseudo-idealista, pseudo-compassivo, pseudo-sábio. A fraude é a aliada mais íntima do filisteu. Todas aquelas grandes palavras como "Beleza", "Amor", "Natureza", "Verdade" etc. tornam-se máscaras e embustes quando um sujeito vulgar e presunçoso as emprega. Em Almas Mortas você ouviu Chichikov. Em A Casa Abandonada, Skimpole. Você ouviu Homais em Madame Bovary. O filisteu gosta de impressionar e gosta de impressionar-se. Consequentemente, um mundo de enganos, de fraude mútua, é formado por ele e ao redor dele.


O filisteu, em seu desejo apaixonado de conformar-se a um grupo, de pertencer a ele, de integrar-se, fica dividido entre dois desejos: agir como todo mundo, admirar-se com algo, usar esta ou aquela coisa porque milhões de pessoas usam; ou, então, ansiar por pertencer a um grupo exclusivo, a uma organização, a um clube, a um hotel ou a uma comunidade de transatlântico (com um capitão vestindo branco e uma comida maravilhosa), e deliciar-se com o fato de um grande executivo ou um conde europeu estar sentado a seu lado. O filisteu muitas vezes é esnobe. Ele se entusiasma com a riqueza e com a posição social: "Querida, eu acabei de falar com uma duquesa!"


O filisteu não conhece e nem se importa com nada de arte, incluindo a literatura – a sua natureza essencial é anti-artística [...]. O filisteu não distingue um escritor de outro; na verdade, ele lê pouco e apenas o que pode ser útil para ele, mas pode entrar para um clube do livro e escolher livros bonitos [...].


Em seu amor pelo útil, pelos bens materiais da vida, torna-se uma vítima fácil da publicidade/propaganda. Os anúncios podem ser muito bons – alguns deles muito artísticos – mas não é essa a questão. A questão é que eles tendem a ser um apelo ao orgulho que o filisteu tem de possuir coisas, sejam talheres ou roupas íntimas. Refiro-me ao seguinte tipo de anúncio: acaba de ser apresentado para a família um aparelho de som ou uma televisão (ou um carro, ou uma geladeira, ou talheres de prata –  qualquer coisa serve). Ele acaba de ser apresentado à família: Mamãe esfrega as mãos de prazer, as crianças aglomeram-se em torno dele, extasiadas; Júnior e o cão correm até a borda da mesa on de o ídolo está entronizado; até mesmo a vovó de rugas radiantes espreita de longe; e um pouco além, com os polegares alegremente enfiados na parte superior de seu colete, surge o pai triunfante, o benfeitor orgulhoso.


O filisteísmo rico que emana dos anúncios não é devido à exagerada (ou inventada) glória deste ou daquele item ou artigo, mas à sugestão de que o auge da felicidade humana é comprável e que a compra, de alguma forma, enobrece o comprador [...].

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