segunda-feira, 27 de junho de 2016

Adeus, Caçapava!

É certo que o tempo, com sua indefectibilidade, sempre virá a pregar-nos suas peças, ainda mais quando, à medida que envelhecemos, se nos torne cada vez mais exíguo.


O afunilamento natural da vida, o correr involuntário para o interior das quatro linhas do caixão, ocorre inexoravelmente todo e qualquer dia. Sabemos que o ontem já se foi e o que o hoje amanhã o será, mas, ainda assim, no presente, na hora, no minuto e no segundo em que se anuncia a morte de alguém com quem privamos de distintos momentos de nossa vida e por meio de quem construímos sonhos e mitos pessoais, é como se o tempo nos desse uma trégua em sua inexorabilidade, permitindo-nos naufragar seguros pelas ondas do passado, que se tornam, por mágica, perenes e que, com sorte, restarão materializadas por palavras gravadas na pedra: verba volant, scripta manent.


Hoje, morreu Luís Carlos Melo Lopes, vulgo Caçapava, jogador de meio-campo do Sport Club Internacional nos anos 1970, como é ocioso aqui explicar, já que fato sabido por todos e acessível até a quem tem como parâmetro de conhecimento apenas a Wikipédia.




Deve-se dizer, muito brevemente, apenas para ilustrar, que, em essência, Caçapava fazia as vezes de volante no grande time do Internacional de 1975 e 1976, o time bi-campeão brasileiro, apreciado por todos até hoje mesmo aqui no Centro do País. Quem pôde ver aquele time jogar, como já disse inúmeras vezes alhures, sabe o quanto lhe dói na alma ver o Internacional de hoje jogar. Não é questão de saudosismo. É questão de justiça.


Enfim, não quero tornar-me enfadonho aos olhos de quem não sabe ver e nem aos ouvidos moucos da juventude de hoje, centrada em ídolos alienígenas pela falta de telúricos. Caçapava era negro e gaúcho, originário do centro do Estado, de família humilde, como sói acontecer a quem traga, no fenótipo, as marcas da cultura a sobrepor-lhe a condição humana. Fisicamente falando, era o que chamamos, na linguagem futebolística, de “tanque”: um homem gigantesco e forte, como deviam ser os volantes de outrora no Rio Grande.


Caçapa, eis o termo em sua versão mais curta e íntima, tinha um fôlego de cinco homens comuns somados: portanto, com seus dez pulmões, não havia adversário que lhe escapasse. Jogava duro, mas não era desleal. Era, enfim, um guerreiro no melhor sentido da palavra, daqueles que, ao aparecerem em campo, trazem à mente a imagem de um gladiador acostumado a lidar com leões, tamanho o seu vigor e sua natureza. Vendo suas fotos mais recentes, em que, não raro, é acusado de ser “gordo” pelos papas do politicamente correto, temos nós, os antigos que o vimos de perto, a real medida da injustiça que é tentar denegrir-lhe a imagem por meio de um adjetivo dessa natureza. Caçapava não era gordo, nem, tampouco, obeso; era um homem de estrutura enorme, a quem ser outra coisa diferente do que foi até a morte não tinha sentido algum. Falo isso porque o conheci pessoalmente.

Nos idos dos anos 70, meus avós maternos moravam no mesmo prédio de apartamentos em que morava o próprio Caçapava, na Padre Cacique, quase em frente ao Beira-Rio. Eu, criança, pré-adolescente, ao visitar meus avós, tive a oportunidade de, certa feita, a convite de minha avó, receber, na casa dela, a visita do Gigante Caçapava, especialmente convidado para um jantar em que eu, um menino de 9 ou 10 anos, torcedor do Clube do Povo, seria apresentado a um de seus ídolos.

Quando se abre a porta e entra aquele negrão (o termo é aqui usado em sentido amistoso, como se podia fazer nos anos 70 sem medo de ser escorraçado por alguma brigada politicamente correta), eu me senti um anão, um inseto. De brincadeira, tive a oportunidade de dar um soco na perna do sujeito, a qual me pareceu feita de pedra. Recebi, em troca, ao final dos pratos servidos por minha avó, uma camisa autografada das mãos do próprio ídolo e um caderno com os autógrafos de todo o time de 1976 (vejam que relíquia!), ambos, infelizmente, perdidos, no descuido de alguma das várias mudanças familiares por que passamos... Reza a lenda familiar que meu avô e minha avó foram pessoalmente ao Beira-Rio, em dia de treino ou coisa que o valha, e com a anuência da Direção, acompanhados de Caçapava, não só colheram os autógrafos de todos os jogadores, como também fizeram com que cada um deles vestisse, por um segundo, a camisa com que viriam a presentear o neto, a fim de impregná-lo da alma colorada... No dia do jantar, lembro-me de perguntar a Caçapava o que se fazia nas “concentrações”, para mim, então, um termo incompreensível, e receber como resposta a explicação de que ficavam pensando em como derrotar os adversários ou descansando para tanto. Tratava-se, como se pode ver, de um homem simples, sim, e com a correta percepção do dever, além de ser gentil com os velhinhos.

Hoje, estão mortos meus avós e está morto o ídolo. Morreram-me até os pais, é verdade, mas restou o guri, que não se vai jamais, e que me acompanhará até o túmulo.


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P.S.: Venho, já há algum tempo, escrevendo apenas em meu Blôgo pessoal sobre assuntos relacionados ao Sport Club Internacional. Desta feita, porém, remeterei o texto também ao Ministro, supremo artífice do Blôgo Ludopédio Colorado, para publicação conjunta.

Imagens compiladas pelo Ministro.